por Helder Robalo, em 21.04.07
Resolvi colocar aqui um texto que tinha escrito num outro espaço. Mas tendo em conta que é sobre a nossa aldeia, não posso deixar de vos dar a conhecer estas memórias. Espero que gostem!
"Deliciado. É assim que melhor me posso descrever ao ler este texto da once in a while. Por momentos regressei à infância, à ansiedade crescente enquanto se contavam no calendário os dias que faltavam para a grande viagem.
A excitação no reconhecimento do caminho, aqueles rochedos a mais de cem quilómetros do destino mas que pareciam tão iguaizinhos aos de lá que levavam ao inevitável "já 'tamos a chegar mãe", logo seguido da desilusão provocada pelo "ainda falta um bocadinho filho".
Os amigos que se viam duas ou três vezes por ano, os avós que haviam regressado de França, a certeza de que, naquele armário, abrindo a última porta da direita, estava lá o saco dos rebuçados, a pilha de chocolates, os pacotes de bolachas e o maternal ralhete do costume: "já comeste muitos doces", protegido pelo sorriso delicioso da avó, acompanhado do habitual "deixa lá o gaiato".
As idas para a casa em frente, em obras mas com o dono fora, à descoberta dos espaços por construir, brincando aos espiões a rastejar por baixo da protecção de arame... Os vizinhos do lado, que só víamos uma vez por ano, no mês de Agosto. A festa... a festa da aldeia, as corridas pelo campo da bola, os sumos que sabíamos que o pai pagava e se não pagasse pagava o tio ou o avô... Ou então havia aqueles duzentos escudos que a outra avó dera "para beberes um sumo lá na festa". E esse era meu: "Foi a avó que deu e ela disse que era pra comprar um sumo". Mai'nada!
Os almoços e jantares de mesa cheia, com os primos e os tios, todos a falar, uma confusão monumental, as gargalhadas, a casa cheia de vida, a televisão com um tipo qualquer a falar em espanhol porque em casa não havia televisão espanhola e era engraçado ouvir o homem a falar outra língua, os cafés cheios de gente, os carros a atravancar as ruas (quase parecia que se estava em Lisboa) e a sesta obrigatória "senão logo não vais à festa". E ao fim de cinco minutos a fingir que se estava a dormir, acaba-se mesmo por adormecer... E à noite a festança, a corrida para a quermesse para compras as rifas e levar uma carrada de cacada pra casa que a mãe insistia em dizer que não tinha onde guardar. "Toma lá mais cem escudos". E o sorriso traquino...
Os passeios em cima do burro do avô, que, ao lado, insistia em dizer ao meu pai "deixa lá ir o cachopo, que eu posso bem ir a pé". As idas ao "chão", ajudar a regar, querer à força pegar na enxada pra ajudar a avó a semear os feijões ou a mudar o rego da água para regar os tomates, as vagens e as melancias. "Logo levas esta pra comeres ao jantar, que já deve 'tar docinha".... "Ó pai, ó pai, a avó disse que logo posso levar uma melancia".
As velhotas da aldeia que rapidamente procurava visitar, nem que fosse preciso correr a aldeia toda. Até porque havia grandes probabilidades de encontrar o Tiago da Ti Cao ou o João da Ti Palina. E, se assim fosse, havia jogo da bola garantido no largo do Sant'António até ao fim do dia, esquecendo quase a hora do jantar. "Se eles já estão a jantar estou lixado". Corre, corre, corre. Transpirado, cansado até mais não, o coração quase a sair pela boca e a alegria de ver que não, que chegara à justinha. "Andas na bola o dia todo nem te lembras de comer"... Lembrar lembrava, mas a malta aguentava a fome que a bola 'tava a rolar e era preciso ganhar o jogo.
E continuar mais um dia e outro assim, sempre na alegria de aproveitar a porta aberta e sair sem quase dar satisfação a ninguém. Até ao fim das férias e ao dia em que era preciso começar a fazer malas para voltar à cidade. Mas sempre na esperança de ser o último a ir embora, mesmo que se corresse o risco de ficar sozinho e apanhar uma seca monumental porque já não estava ninguém, já tinham ido todos embora."