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Blogue para aqueles que têm raízes nesta freguesia do concelho de Idanha-a-Nova e não tiram do pensamento a aldeia que os viu nascer. Pretende-se divulgar a história e cultura da Aldeia e dar a conhecer o que por aqui acontece!
"Ah cã negro".
Era sempre assim que, invariavelmente, a "Ti Palina" reagia quando nos metíamos com ela ou quando fazíamos alguma asneira. Lá nos ia aturando com os seus já muitos anos na altura, éramos nós ainda rapazolas em plena adolescência, ávidos de bola, de corridas ao ar livre, de asneiras. O campo de futebol era o largo da capela de Santo António e a baliza a parede do palheiro. Eu, o Tiago e o João, o neto dela.
Sentada à porta de casa, na conversa com a Ti Cao (para quem não sabe é a Ti Maria do Carmo, avó do Tiago), lá ia deitando o olho às asneiras que íamos fazendo. A bola para o telhado, para o quintal ou contra a parede da capela. E lá vinha o grito de aviso que quem, parecendo que não, está sempre com um olho em nós: "Oh canalha do diabo que não tendes juízo". Tínhamos. Pouco, mas tínhamos.
Recordo a partida que uma vez lhe preguei, depois de uma aposta com ela: disse-lhe que, só para a chatear, ia furar uma orelha e passar a usar brinco. Na vez seguinte que fui a Aldeia de Santa Margarida levei no bolso um daqueles brincos de íman, pequeninos. Andou sempre comigo no bolso até a encontrar à porta de casa. Brinco rapidamente posto à socapa na orelha fui-me sentar ao lado, começando a elogiar os seus brincos de ouro. Ia levando na cara quando ela viu o brinco azul, minúsculo, a reluzir na orelha. "Ah cã negro, atão tu furaste a orelha", disparou imediatamente, já com a mão no ar a caminho do lombo... Gargalhada geral de quem estava avisado e de quem logo percebeu a brincadeira. Gargalhada dela quando percebeu também a brincadeira, sem a levar a mal...
Nos últimos anos pouco a via, desde que, por causa da idade e da doença, foi morar para casa dos filhos, em Castelo Branco. Fui visitá-la no último Verão. Quase não se lembrava de mim. Mas não me deixou ir embora sem um abraço e um sorriso quando me reconheceu, quando percebeu quem estava ali em frente a ela. Custou-me vê-la. Mas, ao mesmo tempo, a força dos mais de 90 anos, de uma vida que terá sido, com toda a certeza, muito dura, também não perdoou.
Soube ontem à noite que a Ti Palina nos deixou no passado fim-de-semana. Invadiu-me uma tristeza imensa. Na Páscoa estive para a ir visitar e acabei por adiar. "Fica para a próxima", pensei. Não fica. Fica apenas a lembrança dela sentada à porta de casa ou no banco de jardim junto à Capela de Santo António, à sombra, na conversa com as amigas.
Os meus sentimentos à família. E um abraço, grande, ao neto João, se ler estas linhas. Fica uma singela homenagem à tua avó, de quem muito gostava. Paz à sua alma.
Fica também a lembrança dos meses de Agosto a jogar à bola no largo da capela.
"Ah cã negro..."